Negociação
Eu considerava que meu tempo na Lemos de Brito não tinha gerado resultados para sequer arranhar a arapuca na qual me metera, dado o seu tamanho. Eu ainda vislumbrava caminhos a desbravar, mesmo que assustadores. Mas a quem passar aquela “encrenca” para assumir uma empreitada muito maior? Acertar todas as pontas dessas questões demandaria muita negociação.
Quando saí do Instituto Muniz Sodré para a penitenciária Lemos de Brito, não tive o menor desconforto em deixar a casa entregue à nova diretora. Do que eu fizera, ela no mínimo faria melhor. Mas e quanto a penitenciária Lemos de Brito, o que fazer? Desistir assim, ainda vendo tanto por fazer? Apostar tantas fichas nos novos agentes penitenciários?
Se você leu o último texto que publiquei aqui no site, já sabe que o Diretor Geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro – cargo, à época, equivalente ao de Secretário de Assuntos Penitenciários – pediu para se aposentar e me recomendou para o seu lugar.
Neste post dou sequência a uma série de textos que venho publicando há quase três meses. Neles venho fazendo reflexões sobre o eu, o outro e as relações do ponto de vista da minha história profissional. Escolhi minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro para desenvolver essas reflexões, pois assim também analiso nossas relações com as instituições totais.
Minha vivência no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro está contada nos textos abaixo:
- Liberdade e prisão – minha chegada no Sistema
- Formando redes de suporte à gestão – sobre a excepcional equipe de voluntários que formei no Instituto Muniz Sodré
- Ampliando o processo de gestão – de como envolvi os guardas na gestão do presídio
- Ampliando o plano de gestão – sobre a formalização do plano de gestão do Instituto Muniz Sodré, cocriado pelos grupos de atores que compunham a cadeia
- Treinamento de novos agentes – de como receberíamos um grande e inexperiente contingente de novos agentes penitenciários
- Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento de pessoal – de como planejamos e realizamos o treinamento de 1.000 pessoas, sempre envolvendo os agentes mais antigos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro
- Formação de equipes – minha chegada na penitenciária Lemos de Brito, com um complicado contato inicial com os guardas
- Crescimento baseado em convicções – sobre os primeiros desafios na Lemos de Brito e como, de repente, apareceu um maior
Negociação: de novo, a hora dela
Na Lemos de Brito já tinha sentido o amargor da impotência diante de um sistema opressor e muito cruel. Essa sensação confirmou a ilusão que sempre carreguei, desde que assumi meu primeiro cargo de diretora de presídio: nenhum sistema penitenciário é uma solução para problemas da magnitude que encontramos na nossa perversa e desigual sociedade.
Pensei comigo: “nunca me senti mordida pela mosca azul – até porque sabia que aquele azul possivelmente seria de algum veneno. Se sempre tive essa consciência, por que ficar?”
Quando assumi o Instituto Muniz Sodré eu sabia o nome de cada funcionário eu iria lidar. Além disso, sobre várias dessas pessoas eu já possuía pistas, uma vez que as conheci nos grupos de crescimento anteriores à minha posse no Muniz Sodré. Eram pessoas “do meu tempo”.
Enquanto Diretora Geral seria diferente, eu iria lidar com categorias: presos, agentes. E assumir a função significaria que, acima de mim, estariam apenas o Secretário de Justiça e o Governador.
Eu tinha consciência de que o sistema penitenciário, de maneira geral, era falido. Só que eu também sabia que quase tão presos quanto os internos estavam os agentes penitenciários: aquele era o trabalho deles, a vida deles. E esta não dava muitas alternativas de escolha.
Foi analisando o cenário desse ponto de vista que eu acreditei na mudança, na possibilidade de fazer diferente.
Condições para a mudança
Decidi negociar, mas sem nenhuma possibilidade de flexibilizar nas condições. Elas eram eminentemente duas:
- Que fosse criado um quadro de carreira, com progressão nas funções, podendo um agente penitenciário chegar à condição de diretor.
- Que fosse criada uma escola penitenciária, assegurando um processo sustentável e de alta qualidade de treinamento para os funcionários do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.
Ou isso, ou nada. E essas duas condições faziam muito sentido para mim. Se fossem atendidas, finalmente aquela categoria – que era a real responsável pelo cotidiano do sistema – iria ter condições de preparar-se para geri-lo. Não adiantava ter isso sem o respaldo de uma escola que objetivasse garantir uma formação muito bem estruturada e fundamentada.
Com as duas condições atendidas, com o plano de carreira já criado e a escola penitenciária em funcionamento, eu poderia ir para casa – e com a sensação de ter feito o que estava ao meu alcance.