Formando redes de suporte à gestão

Formando redes de suporte à gestão

Na semana passada comecei a relatar a minha experiência no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, me propondo a refletir sobre o eu, o outro e as relações. Neste texto vou dar sequência ao relato contando como fui, aos poucos, formando redes de suporte à gestão de um presídio, uma instituição tão complexa.

Terminei o último texto falando da minha posse enquanto diretora do Instituto Muniz Sodré, uma unidade que trata de jovens delinquentes, na faixa de 18 a 21 anos. Destaquei que fui a primeira mulher empossada diretora de um presídio no Rio de Janeiro e chamei a atenção para a surpresa da imprensa diante daquele ineditismo.

Frente a frente com os jornalistas, rapidamente, elaborei a situação na qual eu estava e já comecei a tomar partido do meu novo lugar de fala. Isso me rendeu um tempo interessante da imprensa falada e escrita, com entrevistas que muito me ajudaram. Por que? Primeiro porque eu era uma ilustre desconhecida que pensava coisas as quais precisava partilhar. Eu sabia que precisava de aliados. O Sistema Penitenciário é completamente contraditório. Por um lado, delega um poder absurdo a um diretor. Por outro, o esvazia completamente de recursos, principalmente recursos humanos, para qualquer projeto mais ousado.

 

Formando redes de suporte a gestão: o início

De forma nada inocente, vendi meu peixe na imprensa. E o fiz com tanta sinceridade e convicção que rapidamente formei uma equipe paralela de voluntários que compraram aquela briga.

Recebi o contato de uma então professora da PUC Rio que me dizia: os dias X e Y estão livres e à sua disposição. Anexo, seu currículo.

Essa criatura maravilhosa saia periodicamente da Gávea para Bangu, de coração aberto e mangas arregaçadas, para fazer o que viesse a ser útil. Quando fui indicada para outra penitenciária, recomendei-a para meu cargo de diretora. A partir de nós duas, uma sucessão de psicólogos, advogados e assistentes sociais passaram a ocupar cargos de direção nos presídios do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.

Outras pessoas voluntariaram-se para, com suas atitudes, colaborar para um projeto que ainda estava muito mais no campo das ideias do que na efetiva ação. Uma psicóloga que conheceu e trabalhou com os internos um a um, fazendo múltiplas dinâmicas; um psicopedagogo que fez um trabalho de coach com as professoras; uma produtora cultural recém chegada do seu Doutorado na França; alguns advogados, artesãos… Tivemos inclusive atividades culturais e de entretenimento com Sandra de Sá, Fafá de Belém e Hamir Haddad, que encenou várias peças.

Já o primeiro contato com os internos foi menos “corporativo”, por assim dizer. Reunimos todos no refeitório e, na falta de auditório, subi numa mesa para enxergá-los. Disse: “quero ouvi-los”.

Trinta segundos foram suficientes. Começou um burburinho que foi crescendo, crescendo… Mas era impossível de identificar qualquer coisa. Naquele cenário, respondi com um grito: “podem parar! Eu não ouvi uma única palavra que vocês disseram, mas entendi o recado: vocês precisam falar. A última coisa que farei é fingir que estarei ouvindo. Mas tenho apenas dois ouvidos. Fica aqui uma promessa: irei multiplicá-los. Vou formar uma equipe que, como eu, quer, de fato ouvi-los. Peço paciência e confiança para um certo tempo no qual irei me organizar”.

Um dos primeiros nós da rede de suporte à gestão foi a então professora da PUC Rio que já mencionei. Mas dois nós não fazem uma rede; formam uma reta. Para um cenário tão complexo, eu sabia que a rede que precisaria ser formada também seria complexa. E ela necessariamente contaria com a participação dos internos.

Veja, acreditar que formamos redes de suporte à gestão sem que os “geridos” participem é uma das grandes hipocrisias organizacionais que vi em diversas experiências profissionais, nos presídios e fora deles.

Não há outra forma de olhar para instituições senão enquanto redes e é inocente acreditar que um poder central, controlador e diretivo irá conseguir a obediência de todos. Mesmo em instituições claramente marcadas pela disciplina, obediência e, em vários níveis, servidão. Eu sabia que precisaria dos internos e garantir a confiança deles era o primeiro passo.

Eles concordaram com a minha proposta, acreditaram na minha promessa que iria multiplicar os ouvidos. Daí eu caí dentro com garra, dedicação e uma certeza íntima: “vai acontecer”!

 

Iniciando o processo de gestão

A primeira pessoa convidada a integrar a equipe foi a secretária, que se tornaria apoio incondicional e indispensável em toda minha gestão. Ela era uma agente penitenciária que trabalhava na área de pessoal.

Ela passava uma tremenda confiança pela firmeza, dignidade e respeito que recebia de todos. Chamei-a em meu gabinete, fiz o convite e recebi um redondo “não”.

“Mas por que não?“, retruquei. “Porque eu não gosto das pessoas que ocupam o poder”, ela respondeu.

Essa postura da pessoa que viria a ser minha maior aliada também me leva a refletir sobre as redes que formamos. Numa organização, você necessariamente forma laços “funcionais”: eu, função diretora; ela, função secretária.

Mas se o componente do laço é só funcional, ele não gera rede. Numa rede não há hierarquia. Em redes, a constituição do laço é voluntária e para isso, precisa existir confiança das duas partes dispostas a formar o laço para um empreendimento maior. Numa rede, quando um nó enfraquece, toda a estrutura fica comprometida. Cada nó mantém o outro firme para que a rede siga funcionando.

Depois de muita conversa, consegui convencê-la a ficar na posição de secretária. Essa indispensável aliada seria fundamental na próxima etapa da jornada: envolver os guardas da penitenciária nesse projeto…