A mulher e suas escolhas
Ninguém mais do que a música para fazer ponte em nosso encontro entre as ideias e os sentimentos. Pensei numa trilha sonora que falasse da mulher e suas escolhas, que contasse a trajetória da mulher para discutir sua inserção em vários contextos, especialmente no mercado de trabalho.
Começo o ano olhando para nós, mulheres. Neste e nos próximos textos te convido a embarcar comigo em reflexões sobre nossa existência, nossos papéis, sobre a mulher e suas escolhas. De vez em quando vou retornar algumas décadas para falar de como fomos nos construindo socialmente. E de vez em sempre pegarei carona em vários compositores e intérpretes.
Meu convite é para que, ao ouvirmos cada música, a deixemos escorrer por dentro de nós e busquemos um significado muito pessoal que praticamente a tornará única em nossa versão particular.
Comecemos nossa viagem ao som desta música, atentas ao que reproduz no nosso íntimo.
Muitos sonhos realizados e frustrados tiveram, pelo menos simbolicamente como pano de fundo, essa representação sonora, acompanhada pela fala categórica do “unidos para sempre até que a morte os separe”.
Independência ou morte?
À morte e só à morte coube a opção do destino do casal que nesse momento compactuava com a magia da projeção do decreto de uma felicidade ou renúncia a mesma felicidade, desde que mantida essa união sagrada, a qualquer preço.
Convenhamos que nada mais natural do que a conivência com o desejo dessa estabilidade geradora de uma família; mas delegar exclusivamente à morte a possibilidade de mudança de tal destino, no mínimo me parece mórbido e paralisante.
Considerando os mistérios humanos, a precocidade da idade em que geralmente se firmam contratos dessa natureza, “para sempre” me parece muito tempo para qualquer proposta. A ideia de irreversibilidade marca esse decreto muito mais do que uma bênção como ameaça. Sequer é um desafio, já que não deixa escolha.
Apesar de sua força e inegável impacto social, é incontrolável o número de separações que subverteu a determinação do “para sempre”. Hoje é normal o filho do 1º casamento com a filha do 2º casamento que é irmã de um terceiro que… Enfim, colégios mais alternativos já adotam fichas de inscrição de alunos com endereço do pai e da mãe. A burocracia se rende aos fatos.
Voltemos para os poetas e vamos buscar numa denúncia sutil de Chico Buarque a origem dessas casadoiras subalternas imaginadas com a vocação única do existir para o casamento.
Modelo proposto da mulher sedutora, submissa, girando em torno e à sombra dos maridos, colhendo as migalhas dos restos e destituídas de sonhos e desejos.
- Como cai dentro de nós essa mulher?
- Como reagiu socialmente essa mulher?
A mulher e suas escolhas: maternidade, a decisão mais difícil
A descoberta da contracepção devolve à mulher a propriedade do seu corpo e diz a ela que prazer e procriação são realidades alternativas. É a mais revolucionária descoberta dos anos 1970. Fica a mulher cara a cara consigo mesma, topando agora com o seu desejo e diante da mais delicada situação que se vê o ser humano: a escolha.
É também nos anos 1970 que iremos nos deparar com um sequenciamento de momentos de luta, buscas que se voltavam para tentar estabelecer uma igualdade. Não mais na posição de avesso do outro, mas na busca do seu próprio lugar, vamos encontrar a mulher oferecendo seus contornos próprios marcando, agora a diferença.
Até a década de 1970 ficava, muito claramente, a mulher confinada ao privado. O público era delegado ao homem. O mundo masculino era e é assim, essencialmente diferente nas oportunidades. A mulher mais do que cavar sua independência econômica, buscava o acesso a horizontes outros, novas trocas, novos saberes, influenciar e exercer poder nas decisões sociais. Faziam valer seus desejos e queriam transformá-los em conquistas.
É importante estarmos atentos, no entanto, que quando defrontadas a mulher e suas escolhas, aquela traz consigo todo um peso cultural que a contamina e dota de uma ambiguidade avassaladora na busca de novas definições do seu papel.
A partir da década de 1980 vai ficando cada vez mais evidente que o rompimento do espaço privado e a presença no espaço público vai se dar com conflitos, de várias ordens e em vários níveis – como tentarei contar no próximo texto.