A mulher e o trabalho

A mulher e o trabalho

Romper o espaço privado e colocar-se presente no espaço público, originalmente dedicado somente aos homens, foi o que abriu espaço para refletir sobre a mulher e o trabalho. Entretanto, não deixa de ser curioso perceber que os conflitos decorrentes desse movimento – que teve marco nas décadas de 1970 e 1980 – ganharam como problemática o trabalho no espaço público, ignorando todo o trabalho privado, doméstico, ao qual as mulheres já tinham que se dedicar.

Comecei o ano olhando para nós, mulheres. Desde a semana passada embarquei em reflexões sobre nossa existência, nossos papéis, especialmente sobre a mulher e o trabalho. Na semana passada dediquei-me a falar sobre as escolhas com as quais a mulher normalmente se depara.

De vez em quando vou retornar algumas décadas para falar de como fomos nos construindo socialmente. E de vez em sempre pegarei carona em vários compositores e intérpretes. Meu convite é para que, ao ouvirmos cada música, a deixemos escorrer por dentro de nós e busquemos um significado muito pessoal que praticamente a tornará única em nossa versão particular.

 

Confrontando (con)tradições

O trabalho diário da mulher caracterizava-se por uma rotina de tarefas gratuitas que interessavam à família. O trabalho diário dos homens era remunerado e interessava à sociedade.

Na virada da década de 1970 para a de 1980 encontramos mulheres provocadas a romper os espaços privados. Mas nesse rompimento elas se veem impregnadas de demandas contraditórias. Precisam romper a acomodação, como inspirou Rita Lee em sua ironia criativa. Ao provocar a transgressão da tradição familiar, Rita Lee alertava para os riscos de atirar-se à aventura de viver.

Não bastasse a figura paterna dura e castradora, vamos encontrar seu aliado nos maridos. Quem diria que nosso saudoso Ataulfo Alves fosse dono de machismo tamanho que, além da famosa “Amélia” – a que encarnava sua “mulher de verdade” no mais lamentável estereótipo – tivesse sido também um aliado de Noel Rosa, o algoz de sua esposa Lindaura.

Lindaura, ao cogitar a bravata de “trabalhar fora”, foi brindada por Noel por uma “pérola musical” – aliás, a única que compôs para ela.

Lindaura não quis ou não foi capaz de querer. As outras Lindauras também quiseram e não quiseram, foram encorajadas ou ameaçadas. E assim começa a se constituir a mulher dos anos 1980/1990.

 

A mulher e o trabalho

O rompimento com um código cultural milenar tinha um preço alto a ser pago. Para essa dívida não havia fiador e a penhora era do único bem: o desejo de ser. A quitação da dívida de exclusividade das mulheres.

A mudança do papel feminino se deu à revelia da mudança do masculino. Nesse processo, a mulher recebia, o tempo todo, mensagens duplas: “para ser respeitada pense, aja e trabalhe como um homem. Mas para ser amada, continue sendo mulher”.

Essa imagem ambígua da mulher, sofrendo uma dupla coerção de quereres, numa dinâmica de desejos e anulações sem integrações possíveis… O esforço desesperado para afirmar-se e defender-se da negação que se tenta lhe impor é transformado em questão pela sensibilidade feminina de Caetano Veloso.

A mulher se escuta, encontra-se consigo mesma e topa com possibilidades, limites, medos, desejos, culpas, fantasias e se apercebe do próprio enigma que a constitui. Impossível olhar para si sem conflitar-se e debater-se entre dúvidas – na maior parte, sem respostas. O fantástico não é o que ela descobre, mas o que está velado. Kierkegaard nos socorre com a filosofia que afirma: “aventurar-se causa ansiedade, mas deixar de arriscar-se é perder a si mesmo… E aventurar-se no sentido maior é precisamente tomar consciência de si próprio”.

Sai de si para o mundo. A mulher agora transgride não só o lugar doméstico e o espaço público: ela abraça seu espaço na cidadania. Ela inclui-se, implica-se, rompendo com o silêncio e os bons mo(an)dos. Esse movimento é traduzido por Adriana Calcanhotto ao falar de nossas senhas.

Agora, já bem distantes daquelas de Atenas, hei-nos aqui interferindo e rompendo as barreiras do cotidiano, dizendo “gosto” e “não gosto”. Mulheres, mães, cidadãs, empregadas, executivas… Todas na luta por um mercado de trabalho que, ao criar um lugar, não lhes pré-determine enquadramentos masculinos.