Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal

Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal

Um ponto da história que ainda não tinha comentado nesses últimos textos é que eu já conhecia uma boa parte dos guardas do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Conforme mencionei no texto “Liberdade e Prisão”, antes de ser diretora do Muniz Sodré, atuei um período como consultora, num projeto chamado “Prisão Albergue”. Naquela oportunidade tinha feito encontros de grupos de crescimento com os guardas mais antigos. E essa experiência inspirou-me na fase de estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal que estava por chegar.

Se você está chegando agora, pode ser que não saiba que estou desenvolvendo reflexões sobre o eu, o outro e as relações do ponto de vista da minha história profissional. Escolhi minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro para falar da complexidade das relações humanas nas instituições.

Essa história está dividida em alguns capítulos:

  1. A chegada no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro
  2. A formação de uma rede de suporte à gestão do Instituto Muniz Sodré
  3. O envolvimento dos guardas da prisão para iniciar um plano de gestão
  4. A ampliação do plano de gestão, com a participação de diversos grupos de atores do presídio
  5. A despedida do Muniz Sodré e o início de um novo desafio

Neste texto vou contar como se deu estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal, os novos mil agentes concursados pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.

 

Da estratégia

De uma coisa eu estava convencida: os nossos velhos guardas eram os grandes responsáveis pelo controle do sistema penitenciário. Nos grupos de crescimento que desenvolvi com eles, aprendi a respeitar demais a “velha guarda” – ou pelo menos a maior parte desse pessoal.

Eles eram completamente desprovidos de qualquer treinamento e não tinham quase nenhum recurso. Entre eles encontrei sim, pessoas temerárias, que se assustavam pelo olhar. Mas encontrei também mulheres e homens extremamente generosos.

Muitos gastavam do próprio dinheiro para manter, no bolso, um pequeno estoque de analgésicos, para quando vissem um preso com dores de cabeça de desespero. Outros que nem eram fumantes andavam com cigarros para compartilhar com os presos – iam muitas vezes acompanhados com palavras de consolo.

A posição desses profissionais não era nada fácil. E de repente eles se viam assustados, com um medo provocado pela entrada de um grupo de agentes mais preparados, física e intelectualmente.

Propus ao meu Diretor Geral fazermos uma eleição dos nossos melhores quadros de funcionários e premiá-los por seus destaques. Ele concordou e ali começamos um belo período de exercício democrático: instalamos urnas em todas as unidades e organizamos a votação para que os agentes elegessem um perfil que melhor representaria todos os colegas. Assim foram eleitos 23 funcionários-destaque.

Para eles, fizemos uma homenagem formal na Secretaria da Justiça à qual, na época, a Diretoria Geral de Assuntos Penitenciários estava subordinada. Para a homenagem convidamos a família e os amigos dos guardas eleitos. O agente mais votado, além das honrarias, recebeu uma viagem para sua cidade natal, em Alagoas, com toda sua família.

Para além da homenagem, os 23 tinham uma missão: 15 deles me ajudariam a preparar e conduzir o treinamento de novos agentes penitenciários. Reuni-me com eles, pedi que conversassem entre si e decidissem os 15 que teriam o perfil didático mais indicado.

Paralelamente fui buscar no mercado outras 15 pessoas, essas com formação em alguma área das Ciências Sociais: psicólogos, pedagogos, sociólogos… O requisito era ter formação acadêmica ou vivência com grupos de crescimento. Entrevistei 50 pessoas e selecionei 15 extraordinários profissionais. Essas 30 pessoas seriam fundamentais para a próxima etapa da empreitada.

 

Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal: a formação dos formadores

Reunidos com meus 30 “tutores”, decidi “inverter os focos”. Para quem tinha formação e vivência consistentes nas Ciências Humanas e/ou Sociais Aplicadas, eu precisava evidenciar os dados da realidade prisional. Já junto aos agentes penitenciários, precisava desenvolver aspectos de sensibilidade, percepção e habilidades interpessoais.

Essas capacidades, apesar de tão distintas, tinham de ser desenvolvidas conjuntamente. A introdução da formação dos formadores foi um treinamento, para todos, de 40 horas. Passei cinco dias com o grupo. Nos dois primeiros dediquei-me a integrá-los. Foi o momento no qual pude perceber perfis, valores e consegui aproximar algumas pessoas.

Os outros três dias foram de treinamento intensivo! Neles entreguei-me de corpo e alma para levar, aos que tinham formação ou vivência em Ciências Humanas e/ou Sociais, todo o conhecimento que conseguira acumular ao longo dos anos sobre a realidade prisional e suas contradições. Meu objetivo era que eles se aproximassem ao máximo da realidade com a qual iriam interagir.

Já junto aos agentes penitenciários, foquei nos aspectos humanos e pedagógicos. O treinamento também durou três dias.

Todos treinados, chegou o grande momento: reunir novamente as duas turmas, agora transformando-a numa só. Os 30 formadores vivenciaram um novo processo de integração, com os agentes penitenciários assumindo a condução do aprendizado. Fizemos um laboratório em sala de aula: usamos armas que normalmente eram feitas pelos presos, drogas, armas brancas e de fogo. Os guardas criaram um glossário com toda a linguagem usada nas cadeias e procuraram familiarizar ao máximo seus aprendizes com a cultura prisional. Para fechar, uma visita ao “campo de trabalho”: orientados pelos agentes, os “tutores” com formação ou vivência em Ciências Humanas e/ou Sociais visitaram um presídio.

Somente ao fim de todo esse trabalho e, sob minha orientação, os 30 formadores elaboraram um programa completo de treinamento para os novos agentes penitenciários.

Estabelecemos que a carga horária seria de 40 horas. Os mil novos agentes penitenciários seriam divididos em turmas de 25. Em outras palavras, teríamos que treinar 40 turmas ao longo de um ano.

Os formadores foram divididos em duplas, obrigatoriamente composta por um agente penitenciário experiente e um tutor com formação ou vivência em Ciências Humanas e/ou Sociais.

Iniciamos os treinamentos em época de férias escolares, o que nos permitiu utilizar a infraestrutura de uma escola pública. Em 15 salas aconteciam os treinamentos; numa 16ª ficava eu, disponível para ser acionada diante de qualquer situação inusitada e indo periodicamente às salas de aula, tirar uma ou outra dúvida.

A experiência da capacitação dos agentes penitenciários me deixou a convicção do que somos capazes quando estamos certos das nossas crenças, fortalecidos por valores com lastro de princípios éticos e de ideais maduros. E no transcorrer das capacitações percebemos que conseguimos extinguir o risco que eu e o Diretor Geral temíamos: os conflitos entre antigos e novos. O encontro se deu de forma extremamente positiva, viabilizando a formação novos de agentes penitenciários com uma visão e competência ímpares na história do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.

Nessa primeira fase da estratégia, recrutamento, seleção e treinamento do pessoal, capacitamos 250 agentes penitenciários. Mas com o trabalho ainda por terminar, fui chamada para uma nova missão…