Crescimento baseado em convicções
Profissionalmente falando, a chegada na Penitenciária Lemos de Brito era um avanço na carreira. Eu percebia estar sendo reconhecida, via que estava acontecendo um crescimento baseado em convicções profissionais e humanistas que já carregava desde o início da minha trajetória.
Se você perdeu o capítulo da chegada à Penitenciária Lemos de Brito, talvez não saiba que eu venho falando sobre o eu, o outro e as relações do ponto de vista da minha história profissional. Escolhi minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro para desenvolver essas reflexões, pois assim também analiso nossas relações com as instituições totais.
Minha vivência no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro está contada, até agora, neste e nos sete textos abaixo:
- Liberdade e prisão – minha chegada no Sistema
- Formando redes de suporte à gestão – sobre a excepcional equipe de voluntários que formei no Instituto Muniz Sodré
- Ampliando o processo de gestão – de como envolvi os guardas na gestão do presídio
- Ampliando o plano de gestão – sobre a formalização do plano de gestão do Instituto Muniz Sodré, cocriado pelos grupos de atores que compunham a cadeia
- Treinamento de novos agentes – de como receberíamos um grande e inexperiente contingente de novos agentes penitenciários
- Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento de pessoal – de como planejamos e realizamos o treinamento de 1.000 pessoas, sempre envolvendo os agentes mais antigos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro
- Formação de equipes – minha chegada na penitenciária Lemos de Brito, com um complicado contato inicial com os guardas
Uma das rotinas que trazia desde o tempo como diretora no Instituto Muniz Sodré era, pelo menos uma vez por semana, dedicar-me a ouvir os presos, individualmente ou em grupo. Na penitenciária Lemos de Brito, como eram muitos, havia inscrição e era formada uma fila de espera. E logo num dos primeiros contatos, eu já percebi que minhas convicções seriam realmente testadas.
Crescimento baseado em convicções: a primeira audiência com os presos
A cadeia, sabidamente, tinha os “mandachuvas”, do Comando Vermelho ou Terceiro Comando. Esse grupo, não por acaso, era o primeiro grupo inscrito.
Recebi-os no gabinete, no qual ficava uma grande mesa de reuniões. Sentamo-nos, cumprimentei-os e me coloquei a ouvi-los. O que seria o líder do grupo tomou a palavra com ar de diplomacia e iniciou: deu-me as boas-vindas e disponibilizou todo o grupo para colaborar com a gestão, segurança e o que mais viesse a precisar. Escutei com muita seriedade e em tom quase grave, respondi: “Era isso? Só isso? Acho que há um mal-entendido com o objetivo desta audiência. Sei que as condições em um presídio implicam em muito sofrimento e esse momento é reservado para que o preso possa ser ouvido e se possível, atendido em suas múltiplas necessidades. Esse tipo de recepção me parece absolutamente dispensável e equivocada. No entanto, continuo aqui à disposição para ouvir qualquer um de vocês, só que agora no fim da fila cujos nomes já tenho listados. Bom dia para os senhores.”
A partir deste dia, meus guardas triplicaram a atenção no cuidado com os presos, de tal forma que opressões escancaradas não mais ocorressem. E as violências e desvios eram dos mais variados tipos: desvio de carne para o prato do opressor, fumar maconha abertamente pelos corredores, mexer com esposas que iam visitar os maridos, desobedecer a agentes penitenciários… Efetivamente tinha de tudo!
Não é difícil listar algumas conquistas que foram notórias e muito aliviaram o cotidiano na vida prisional. Mas, infelizmente, tenho que confessar que isso era uma gota no oceano. Muito difícil ter acesso aos mistérios que se passam na intimidade de uma unidade como aquela, com pouco mais de 70 funcionários divididos em quatro turnos. Os vícios, as covardias e as opressões seguiam no ar. E eu não me dava ao luxo de alimentar ilusões de estar nem perto de uma gestão capaz de cumprir as reais necessidades de uma instituição como aquela.
De todas as situações que enfrentei, nenhuma situação poderia ser mais constrangedora do que quando um preso pedia ao Diretor, segurança. Isso significava ser transferido para uma unidade infinitamente pior, simplesmente para não ser morto. Até a finalização do processo da transferência, o preso ameaçado tinha que ser isolado numa cela de segurança máxima. Vejam: o ameaçado ficava ainda mais enclausurado porque a penitenciária não conseguia garantir a segurança dele. Isso me abalava, mas também me desafiava a trilhar novos caminhos.
Fundo de Cadeia
Desde aquela primeira audiência com os presos, na qual o “chefe” do grupo se colocou à disposição para “colaborar”, eu já tinha entendido que meu grande desafio na Lemos de Brito era esvaziar essa liderança paralela e apropriar-me da administração da casa. Com pouco tempo enquanto diretora, a penitenciária já aparentava uma sensível melhora nesse quesito; mas eu tinha convicção que tinha ainda uma longa e tortuosa estrada a trilhar. E foi nesse momento que meu Diretor Geral, aquele em quem eu sempre confiei tanto, decidiu parar e ir embora. Ele havia cumprido sua missão com muita dignidade e entendia que era hora de partir.
Eu fiquei completamente desamparada… Senti-me sem confiança de prosseguir aquele duro caminho sem perceber o respaldo de alguém tão confiável acima de mim.
Mas foi aí que tive a primeira evidência de que estava em crescimento baseado em convicções que eu demonstrei ao longo da minha atuação enquanto diretora. Meu ex-Diretor Geral indicou-me para ocupar o cargo dele.
Depois de alguns movimentos de vai e vem na cúpula do Sistema, decidiram fazer uma eleição entre os diretores. O resultado é que fui eleita a Diretora Geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.