Ampliando o processo de gestão

Ampliando o processo de gestão

Eu tomei contato com a crueldade das penitenciárias brasileiras a décadas atrás. A situação das prisões é o que eu venho contando nas últimas semanas, ao mostrar um pouco do cenário que encontrei nos presídios cariocas quando fui trabalhar no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Há aproximadamente 15 dias falei da minha chegada no Sistema e, na semana passada, expliquei como fui formando redes de suporte à gestão para me ajudar a enfrentar os gigantescos desafios que se colocavam. Hoje vou contar como fui ampliando o processo de gestão no Instituto Muniz Sodré. Mas na passagem de hoje, algumas crueldades serão reveladas.

Terminei o texto da semana passada falando que formei uma rede de suporte à gestão paralela à equipe do próprio presídio. Contei com o apoio voluntário de professores universitários, psicólogos, psicopedagogos, produtores culturais, advogados, artesãos… Todos eles formaram uma formidável rede de suporte. Mas ela tinha um porém: seus nós não eram da instituição. E era ela que eu precisava mudar.

Meu primeiro e mais firme suporte de gestão no Instituto Muniz Sodré foi minha secretária, conforme comentei no último texto. E nele também contei da minha primeira tentativa de envolver os internos, já visando ampliar o processo de gestão. Ou seja, com esses grupos de atores mapeados, eu já conseguia vislumbrar sua participação na nova dinâmica do Instituto. Mas outro grupo de atores seria fundamental para o sucesso da empreitada e com eles eu teria que ter, na falta de uma analogia melhor, muito tato…

 

Sobre as crueldades com as quais temos que lidar

Era necessário envolver os guardas do presídio. E antes de começar, tentei me preparar ao máximo para o confronto que já previa. Foi nessa preparação que fui informada de práticas que só posso chamar de horripilantes…

O processo da revista nas mulheres era, para dizer o mínimo, extremamente rigoroso. Como já expliquei, o Instituto Muniz Sodré é uma unidade que trata de jovens delinquentes, na faixa de 18 a 21 anos. Sendo assim, o tipo de visita mais frequente eram as mães dos internos. E em geral, elas tinham um tipo: muito religiosas, normalmente evangélicas, usavam aquelas saias ou vestidões compridos, até o tornozelo. E ao chegar no presídio, se dava o chocante padrão de revista.

As mulheres tinham que colocar uma das pernas sobre a mesa para que uma guarda, calçada com luvas, penetrasse suas vaginas com os dedos, para verificar se elas levavam algo para os internos.

O procedimento obviamente era praxe. E também era motivo suficiente para destruir o único momento ansiado pelo preso. Ao entrar, a pessoa revistada estava tão revoltada que o encontro era um desastre, normalmente recheado de culpas e acusações. Ao sair, o interno ficava impregnado de raiva ou ódio contra os carcereiros e, assim, se formava o ciclo vicioso do antagonismo.

 

Ampliando o processo de gestão: envolvendo os guardas

Não existia nada nem ninguém que pudesse impedir uma intervenção minha para mudar o padrão da revista – e é lógico que era a única coisa que ocupava a minha cabeça. Mas eu sabia que essa mudança poderia ser uma cilada que abriria caminho para o caos. Então decidi usar a arma que, ao longo de toda minha história profissional, quase nunca falhou comigo: o diálogo.

Iniciei o que viria a ser um longo ciclo de diálogos, numa dinâmica de grupos de crescimento: quatro turmas de guardas que, separadamente e uma de cada vez, foram conversar comigo.

O protocolo inicial era sempre o mesmo: sentávamos em círculos e eu levava um bom tempinho apenas olhando para eles, esperando alguma manifestação. E o que eu sempre recebia em resposta era um silêncio muito cruel. Daí eu dizia que não tinha sido fácil organizar aquele momento e, sendo assim, gostaria de ouvir deles o que esperava da minha administração enquanto diretora.

De forma tímida e claramente empenhando algum esforço, um dos guardas normalmente dizia algo do tipo: “esperamos ordens”. Daí um outro vinha e dizia que esperava a imposição de um novo sistema. O vocabulário sempre usava palavras de ordem, mas o comportamento, as expressões, o gestual não eram de pessoas com medo da chefe.

Quando a conversa chegava nesse ponto eu interrompia e dizia: “acho que já entendi o que vocês querem me dizer, vejam se é assim: ‘A senhora faz de conta que manda, que a gente faz de conta que obedece. Diz aí seu jeito porque não é a madame aí, chegando toda cheirosa da zona sul que vai ensinar o serviço para malandro cascudo de fundo de cadeia. Nós somos da casa. Já já a senhora está indo embora e vida que segue, como de costume’.

Eles me encararam com olhar que era uma mistura de flagra e contentamento. Acho que se assustaram pelo fato de estarem sendo “lidos”, mas gostaram de ser percebidos.

Daí eu lhes disse: “se essa é a proposta de vocês, é a mais caduca que podiam me propor. E eu não estou aqui para brincadeira. Eu preciso de vocês, preciso inclusive da proteção de vocês para continuar viva. E eu sei que vocês fazem muita porcaria – e isso tem que mudar. E tem que mudar, principalmente, porque eu sei fazer diferente do que sempre foi feito e tenho muita crença de que vocês também são capazes de fazer diferente do que sempre foi feito. Até porque não é dentro deste presídio que vocês vão encontrar adversários. Os nossos inimigos não estão aqui dentro. Muitos desses presos moram próximos a vocês, são seus vizinhos que deram menos certo ou menos sorte. Nossos inimigos estão em iates, passeando nas ilhas gregas”.

Foi nesse ponto que se iniciou daí um processo de reeducação, feito por meio dos grupos de crescimento. Eu tirava um dia inteiro para me reunir com cada turma de guardas e, nesse dia, fazíamos treinamentos que buscavam um novo olhar daquela realidade. Era super interessante! Normalmente usávamos a parte da manhã para sensibilizar para aspectos intra e interpessoais. À tarde eles se dividiam em grupos para montar um plano de gestão, como se eles fossem os diretores do Muniz Sodré.

Cada grupo de guardas montou seu plano de gestão e elegeu um representante. Os 4 representantes reuniram-se para cruzar os planos de gestão e consolidá-lo num único. Nascia ali a primeira versão do Plano de Gestão do Muniz Sodré; e feito pelos guardas.