Ampliando o plano de gestão

Ampliando o plano de gestão

Minha história no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro chegou, na semana passada, ao capítulo da criação das primeiras versões do plano de gestão do Instituto Muniz Sodré. Elas foram feitas com o envolvimento dos guardas do presídio, um grupo de atores que era fundamental para o sucesso do projeto. Mas para seguir ampliando o plano de gestão eu precisaria envolver vários outros grupos de atores.

Para quem chegou agora vale reforçar que, nas últimas semanas, ando escrevendo sobre o eu, o outro e as relações do ponto de vista da minha história profissional. E escolhi um pedaço dela, a minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, para falar da complexidade das relações humanas nas instituições.

Já falei da minha chegada no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, de como formei uma rede de suporte à gestão do Instituto Muniz Sodré e de como envolvi os guardas da prisão para iniciar um plano de gestão. Neste texto vou contar como, enquanto eu trabalhava com os guardas e os demais funcionários, minha rede de suporte ampliava a gestão pela casa afora.

Ampliando o plano de gestão: a importância da rede de suporte

Uma informação que ainda não tinha comentado nos últimos textos é que o Instituto Muniz Sodré era uma das menores prisões do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Mas mesmo pequena, ela já era uma instituição complexa, com a atuação de vários grupos de atores.

Os guardas do presídio eram uma prioridade para mim, precisava dar atenção a eles. Mas os outros funcionários – médicos, professores, assistentes sociais e advogados – eram tão importantes quanto. E para lidar com tanta gente, era necessário tempo e energia.

Assim, enquanto eu cuidava dos funcionários, minha rede de suporte trabalhava com os outros atores, com o intuito de ampliar o plano de gestão. Uma das psicólogas da rede replicou, com os internos, o trabalho de grupos de crescimento que fiz com os guardas. Montando vários grupos de 12 participantes, ela ocupava a manhã com trabalhos educativos e as tardes com a criação dos planos de gestão feitos pelos internos, como se eles fossem os diretores do Muniz Sodré.

A produtora cultural que tinha recém-chegado do seu Doutorado na França, cuidou da biblioteca e de atividades culturais. Ela fez um verdadeiro milagre, história de filme mesmo! Foi graças a essa frente que a biblioteca, um ambiente totalmente inóspito, foi reformado e começou a atrair uma leitura mais popular até chegar nos livros de Guimarães Rosa, José de Alencar e outros clássicos da literatura nacional.

Para além do trabalho com a biblioteca, nossa produtora cultural levou peças de teatro e shows de música para dentro da prisão. Fafá de Belém e Sandra de Sá foram duas das artistas que se apresentaram lá, em ocasiões festivas.

Todos esses avanços eram gigantescas vitórias para nosso intento, o de humanizar uma prisão. Só que dentre todas as frentes, a que cuidávamos com mais carinho era a escola municipal que funcionava lá dentro – vale lembrar que o Instituto Muniz Sodré era uma unidade para jovens de 18 a 21 anos.

Quando cheguei como diretora do Muniz Sodré, costumava dizer para os internos: “até para ser estelionatário você tem que saber fazer uma assinatura”. Eles gargalhavam com essa anedota…

Embora houvessem professores do município que iam ao Instituto, era mais para “cumpriam tabela”. Quando assumi a função de diretora, a escola estava praticamente abandonada. Só que nela, o psicopedagogo que compunha a rede de suporte à gestão, desempenhou um belíssimo trabalho de coach com as professoras. Resultado final: a frequência dos internos, que era abaixo de 10%, passou dos 80%.

 

O desfecho do Plano de Gestão

Da mesma forma que fiz com os guardas, também conduzi grupos de crescimento com os outros funcionários do Muniz Sodré – médicos, professores, assistentes sociais e advogados – para que eles propusessem seus planos de gestão. E enquanto fazia isso com os funcionários, uma das psicólogas da minha rede de suporte replicava o trabalho com os internos.

Tendo cada grupo de atores concluído sua respectiva versão do plano de gestão, organizamos o grande dia: um evento para cruzá-los e apresentá-los. Representados por um eleito de cada segmento, todos os planos foram apresentados. Ao final do evento, sintetizamos num único documento o Plano de Gestão do Instituto Muniz Sodré, cocriado pelos grupos de atores que compunham a prisão. É fundamental ressaltar que, com a anuência dos guardas, foi abolida aquela forma revoltante de revista às quais eram submetidas as visitantes. No novo padrão de revista, passou-se a cuidar melhor de outros aspectos, muito mais relevantes para segurança dos internos e das visitantes.

O Plano de Gestão organizou a escola, o trabalho, as atividades culturais e esportivas do Muniz Sodré. Das propostas registradas no documento, várias foram implementadas: um campeonato de futebol que incluía a entrega de um troféu para o time vencedor; a comemoração do Natal e do dia das Mães, organizada pelos próprios internos e que contemplava seus valores culturais; o Parlatório, um projeto para reformar uma área do Instituto…

Várias passagens curiosas merecem ser citadas, como a de uma celebração de Dia das Mães, na qual os próprios internos dispensaram um grupo de teatro por eles usarem muitos palavrões. Ou a do planejamento do Parlatório, que envolvia uma reforma de ponta a ponta: da captação dos recursos materiais – que contaria com o apoio do serviço social para ajudar com as doações – à execução das obras.

É esperançoso reativar as lembranças dessa jornada. Elas acionam ideias e sentimentos de humanidades possíveis, mesmo em ambientes tão hostis, sombrios e perversos. Recordo-me que no dia seguinte à implementação do Plano de Gestão, um guarda deu um tapa num preso. Assim que esse ato foi relatado, o guarda foi transferido. Dali em diante até o fim da minha atuação enquanto diretora do Muniz Sodré, jamais foi dado um tapa num interno.

Mas ao mesmo tempo que reacendem algumas esperanças, essas lembranças reforçam as contradições das instituições totais. Porque a grande demanda, a expectativa gerada pelas lideranças da Secretaria de Assuntos Penitenciários do Rio de Janeiro era a de que os presídios não agravassem violências e impedissem fugas. Nesse sentido, estava 100% cumprida minha missão. Mas esse era o grande engano que eu não me permitia cometer. Jamais confundi o clima humanizado que se instalou no Muniz Sodré com qualquer coisa que se pareça com solução.

O Sistema Penitenciário em si é uma estrutura falida e consequência do nosso projeto social – este mesmo, que naturalizou absurdos: castiga os já castigados de forma extremamente tendenciosa, sem a menor pretensão de resgatar possibilidades da reinserção de pessoas na sociedade. Essa dimensão da nossa sociedade cresce e se retroalimenta, de forma proporcional, às violências presentes nas comunidades, atualmente ocupadas por traficantes e milicianos.

Não tenho a ilusão de ter resolvido nada. Apenas prezo cada gesto e cada um que trabalhou comigo. Eles foram muito além da racionalidade, acreditaram na importância de cada indivíduo, de cada grupo de atores. Sei que essas experiências, especialmente as etapas de grupos de crescimento, contrariam muito do que vemos hoje em dia nas prisões. Mas elas nos fazem crer em outras possibilidades.

Tenho clareza de que o que foi feito se desfez como a água do mar, que leva uma obra de arte desenhada na areia. Mas nem as ondas apagam o que aconteceu.