Mudanças e sistemas
No último texto, nos detivemos à questão do medo: a sensação de incapacidade que ele pode gerar, à solidão social que ele pode nos levar…
O ser humano lida com suas dúvidas, mas também com suas dádivas. Nas sociedades capitalistas, você é avaliado na escalada do sucesso: quantos bens você tem, qual sua capacidade de liquidez… Já na dimensão humana, quando falamos de bem estar, querer bem, ser do bem… A serviço de quem você está na vida? O que é sucesso?
Nos últimos anos, vivemos uma sensação de atordoamento. Nosso modus vivendi foi de tal forma aviltado que nos deixou na incerteza, sem um norte. O que fazer? Como agir? Qual o saldo disto tudo?
Sabemos que a História sempre mudou e jamais deixará de mudar. Mas vale a pena pensar um pouco nesse processo sob o ponto de vista da mudança – e como ela pode ocorrer.
É comum acharmos que a mudança ocorre ancorada na informação. Checamos fontes, confrontamos dados, refletimos, para tentar entender se devemos ou não mudar, se devemos sair do quadro A para o quadro B. Mas mesmo exigindo muito, lidar com as informações ainda é a parte mais fácil do processo de mudança.
Vamos usar a situação de um fumante como exemplo. Visitar sites impactantes, com pesquisas comprovadas sobre os malefícios do cigarro, o ajuda a compreender que fumar faz mal. No entanto, grande parte dos fumantes não altera seus hábitos por conta da informação. Sabe que deve parar, mas segue fumando.
Numa etapa seguinte, ele pode até começar a tentar: para por uma semana, talvez um mês… Mas depois, recaídas. É uma luta que acontece com idas e vindas.
Ao mesmo tempo, temos que reconhecer – inclusive baseado em estatísticas – que há uma queda significativa na quantidade de fumantes e nos próprios hábitos de quem fuma. Ou seja, há aqueles que não deixam de fumar apenas por um período. Eles param de fumar. Esses são os grandes vencedores. Nos consultórios de psicoterapeutas, esses prazerosos momentos correspondem aos da alta terapêutica.
Agora uma coisa é parar de fumar, a outra é fazer o outro parar. Eu até poderia dizer que isso é muito difícil, mas posso afirmar com segurança que, na verdade, é impossível! Você pode até dar uma ajudinha, vá lá, mas não vai fazer o outro parar. Quem processa a mudança é o próprio fumante.
Se fazer o outro mudar é impossível, imagine mudar o sistema. Imagine mudar a indústria tabagista como um todo?
Mudanças individuais
Usando o fumante como metáfora e olhando por meio dela, procuramos o ser humano. Este que sempre nasce com dádivas ou castigos genéticos e que, ao longo da vida, vai se apropriando de experiências e adquirindo algumas dúvidas. Essas experiências geram esquemas de funcionamento.
Muitos deles são os chamados esquemas funcionais e são eles que nos impulsionam na direção das conquistas e do que, para cada um, “valha a pena”. Contudo, não seríamos humanos se no pacote da existência não adquiríssemos também os esquemas disfuncionais. Alguns deles sob a forma de verdades absolutas.
No espaço terapêutico cabe a delicada condição de acolher o paciente. É um ambiente em que “tudo pode” ser dito e inclusive o não dito é ouvido através de uma escuta acurada.
Começamos falando de como fazer, como agir. No entanto tudo isso é precedido pela questão chave: “quem sou eu”. Esta indagação que dificilmente terá uma resposta definitiva precisa de nortes. Estar com você mesmo e mais alguém que reflita você para e com você oferece uma base de confiança tão necessária à subjetividade.
Mudanças coletivas
Só que para além do seu ser há o outro. Sim, só nós mesmos processamos a nossa mudança. Mas em qualquer contexto da vida percebemos que o nó da questão de qualquer mudança acaba desaguando num sistema.
Em sistemas autoritários, a decisão é sempre tomada no topo. Para a base, vem apenas a ordem: cumpra-se – muitas vezes acompanhada do velho jargão “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Já na tão ansiada democracia, que tanto bem pode fazer à saúde e ao bem estar das pessoas, o cumpra-se só acontece se a ordem que desce tiver condições de ser, pelo menos, discutida – muitas vezes, para repensar sua própria lógica.
Há um poder que provoca o sobe e desce emocional. E não existe outra saída que não a busca consciente de um caminho democrático que possibilite que o ter e o ser conversem entre si. Esse caminho oferece alternativas reais e viáveis, num modelo humanista das relações. Nessa perspectiva, o objetivo é atingir o bem comum, onde o eu e o outro se encontrem como pessoas e cidadãos – todos com recursos financeiros e emocionais diferentes, mas com direito de seguirem seus propósitos, buscando construir um sistema baseado no coletivo.
Aqui realmente o eu e o outro “desaparecem” e o grande aprendizado implica em conhecer-se e aprender a tirar partido de sua essência para lidar e interagir com a complexidade humana. Para nós, terapeutas, é uma honra ter acesso a este mundo e contribuir para o funcionamento do Humano.