Treinamento de novos agentes
O meu tempo no Instituto Muniz Sodré estava chegando ao fim e a sensação era de missão cumprida. A despedida coincidiu com um momento mágico, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional. Do lado pessoal, a maior alegria da minha existência: uma vida no meu ventre. Do lado profissional, mesmo sem eu saber, já se aproximava no horizonte um novo desafio: o treinamento de novos agentes penitenciários.
Se você não leu meus últimos textos, talvez não saiba que ando escrevendo sobre o eu, o outro e as relações do ponto de vista da minha história profissional. E escolhi um pedaço dela, a minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, para falar da complexidade das relações humanas nas instituições.
Já falei da minha chegada no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, de como formei uma rede de suporte à gestão do Instituto Muniz Sodré, de como envolvi os guardas da prisão para iniciar um plano de gestão e de como ele foi ampliado, com a participação de diversos grupos de atores do Muniz Sodré. Neste texto vou contar que uma empreitada tão arrojada no Muniz Sodré só poderia terminar com um gran finale.
Despedida do Muniz Sodré
Foi meu bebê, que já completava 9 meses no meu ventre, que me intimou a sair do Muniz Sodré. E a saída foi digna de filme.
Estávamos eu e meu marido num churrasco de domingo quando meu rádio de plantão anunciou: motim no Muniz Sodré. Tratava-se de uma greve geral dos agentes penitenciários, os guardas, por aumento de salário e melhoria de condições de trabalho.
Os grevistas decidiram não autorizar entradas de visitantes. E se você quer bulir com os internos tirando-os completamente do sério, mexa com suas visitas.
Meu amado foi meu motorista até a porta do presídio e lá ficou numa profunda atitude de respeito, sabendo-se impotente diante de sua mulher e seu filho. Não lhe cabia a menor interferência a não ser aguardar por meu retorno levando-nos inteiros para casa.
Entro no presídio e o clima era de quebra-quebra. Nuvens de poeira, tijolos arrancados e uma gritaria infernal. Os internos ficavam em 12 galerias sendo que cada uma possuía 12 cubículos. Muitas vezes eles ficavam abertos, só com os portões das galerias fechados. Na primeira galeria que entrei, todos os cubículos fechados com um panelaço infernal, o que tornava a comunicação muito difícil.
Eu passei de galeria em galeria, pedindo silêncio; precisava que me ouvissem para nos entendermos. Em cada galeria, dizia que iria nas outras 11 fazendo o mesmo pedido e, quando voltasse àquela, seria para conversar.
Quando retornei à primeira galeria, conseguimos nos escutar e começar um entendimento. Mas quando estava na metade da conversa, dispara a sirene de emergência. Ela, que só poderia ser tocada quando a direção do presídio perdesse o controle da situação, era o sinal autorizando a entrada do comandante do quartel vizinho, junto de sua tropa. E a partir do momento que ele entrasse, era entregue a ele o poder decisório.
Para mim o soar da sirene foi o anúncio da tragédia. Mas disparou em mim um misto de adrenalina, intuição e diligência, que me fizeram sair correndo portão do presídio afora.
Quando chego na rua, a cena: de um lado da calçada o meu marido, esperando a mim e ao nosso filho, que carregava no meu ventre. Do outro eu, barriguda, correndo ladeira acima, na direção da tropa que já descia marchando, com o comandante à frente.
Parei na frente deles, estiquei os braços e gritei: “parem, parem! Podem parar! Está tudo sob controle. A casa está comigo! Foi o engano de um agente que acionou o alarme”. O comandante respondeu: “certeza, doutora”?
O desfecho dispensa detalhes, valendo registrar que tudo foi administrado. O caminho de volta à casa custou memoráveis risadas, algumas nervosas, outras divertidas.
Treinamento de novos agentes: admissão e capacitação de agentes Penitenciários
Antes de seguir com a história acho válido mencionar que esse meu período profissional foi marcado pelo ápice da felicidade da minha vida: o nascimento do meu primeiro filho. Não vou me alongar neste tema – até porque ele demandaria toda a reverência ao momento sagrado do nascimento de uma vida humana – mas ele dá contexto para o que se seguiu.
Em mais um dia da minha licença maternidade, enquanto amamentava meu filho, recebo a visita do Diretor Geral do Sistema Penitenciário, o que equivaleria hoje ao cargo de Secretário de Assuntos Penitenciários do Rio de Janeiro. Como contei no texto “Liberdade e prisão”, foi ele quem me convidou para o cargo de diretora do Muniz Sodré.
Ele veio desabafar comigo sua preocupação: a chegada de mil novos agentes penitenciários concursados. Por um lado estava feliz, por receber contingente tão significativo. Por outro, carregava dúvidas: como reagiriam os antigos? Como lidaria com os conflitos que necessariamente iriam surgir?
Os agentes mais antigos, dotados de experiência para o bem e para o mal e geralmente com baixa escolaridade necessariamente se incomodariam com os jovenzinhos, concursados com ares de sabichões. Os novos, dominando a informática e com melhor formação educacional apavorariam-se rapidamente diante das situações de risco que iriam enfrentar, ainda mais com a falta de prática. Prato cheio para um clima competitivo, no pior sentido da palavra.
– “E então, Raquel, sua expertise sempre foi de treinamento. Quer comprar essa briga comigo?”, perguntou o Diretor Geral do Sistema Penitenciário.
Olhei para meu bebê e pedi seu aval, prometendo que leite e amor não lhe faltariam. Mas diminuiria a presença.