A mulher e o sucesso profissional
Contrapondo-se ao papel da ovelha negra e liberta das culpas que lhes foram impostas, a mulher entra na década de 1990 integrando o mercado de trabalho – mesmo que este ainda use enquadramentos masculinos. Com o passar do tempo, a mulher e o sucesso profissional passarão a ser companhia um do outro. Essa nova questão abrirá espaço para outros conflitos.
Abri 2022 falando de e para mulheres. Logo na primeira semana do ano escrevi sobre a mulher e suas escolhas, discutindo a mulher em diversos contextos. Já na semana passada abordei a mulher e o trabalho, destacando os conflitos e confrontos necessários para que ela rompesse o espaço privado, doméstico, e acessasse o espaço público.
De vez em quando vou retornar algumas décadas para falar de como fomos nos construindo socialmente. E de vez em sempre pegarei carona em vários compositores e intérpretes. Meu convite é para que, ao ouvirmos cada música, a deixemos escorrer por dentro de nós e busquemos um significado muito pessoal que praticamente a tornará única em nossa versão particular.
Fecho essa trinca de textos abrindo espaço para pensar sobre a mulher e o sucesso profissional. Ao se deparar pela primeira vez com o reconhecimento pela competência no trabalho, especialmente diante dos homens, avizinha-se um sentimento recorrente: o medo.
Poder, sucesso, confrontos
A mulher, o que pode e o que não pode, a partir da década de 1990 confronta-se com o poder no trabalho. O medo do sucesso, síndrome atual das mulheres que lutam no mercado, toma forma e se transforma à medida em que a competência feminina é aludida como ameaça à sua condição de mulher. Muito mais temerosas do que fizeram, temem pelo que deixaram de fazer e dizem isso com todo o fôlego de Fagner numa “Jura Secreta”.
Feminilidade e êxito ficam postos como excludentes. Margaret Mead nos lembra que “quanto mais bem sucedido é um homem em seu trabalho, mais certeza têm todos de que ele será um bom marido. Quanto mais bem sucedida for uma mulher, mais receia-se que ela talvez não seja uma esposa bem-sucedida”.
Passamos a perceber, então, mulheres que não cortejam o fracasso, mas evitam o sucesso. Outras de nós estão aí, se arrependendo apenas do que não fizemos, arregaçando as mangas pelo tudo que há por fazer.
A Mulher e o sucesso profissional: forças da natureza
Toda e qualquer sociedade está por se (re)constituir num desafio enorme de integração da humanidade com a natureza. Vai para muito além do masculino e do feminino: junta ambos numa luta comum por um mundo novo, como sugere nossa imortal Clara Nunes numa parceria genial com João Nogueira, lembrando que, como o homem e a mulher, estão aí as forças da natureza.
Assim como as forças da natureza, a força da cultura também faz maremotos e terremotos no universo dos sexos. Essa transformação que afeta tanto homens quanto mulheres tem sua dose de sofrimento para ambas as partes. Um trabalho de perdas e lutos das posições anteriormente garantidas pelos modelos culturais.
Sociólogos, biólogos, psicanalistas e tantos outros ólogos digladiam-se na interpretação da luta da ocupação de espaços do masculino e feminino na nossa sociedade. Pudera! Muito terão que lutar. Escolheram decifrar o indecifrável. Um Caymmi da última geração interpretou a visão masculina dos mistérios do feminino.
A compreensão dessa mesma mulher no mundo do trabalho não é simples e passa por uma releitura da própria concepção do trabalho. Deslocamos aqui o eixo da mera funcionalidade para o sentido do trabalho.
As mães não alimentam seus filhos para reproduzir a força de trabalho… se bem que o façam. No modelo do mercado, o tradicional valor de um trabalho está diretamente ligado ao seu preço. Valeria a pena aqui lembrar, a todo homem, a importância incalculável da vida. Ela, aliás, lhe gerou a existência e não foi tabelada por moeda alguma. Podemos ouvir esse grito na magia da voz de Gal que chama isso de uma “Força Estranha”.
E é dessa força estranha que precisamos alimentar a sociedade. No fundo, esta encontra nessa força estranha algo essencial e muito familiar, já que dela se alimentou desde muito cedo.
Humanizar as relações de trabalho. O universo feminino sente dor quando sua riqueza é excluída da organização das relações de trabalho. Riqueza oculta: como não dita, talvez não reconhecida pelas próprias mulheres.
O que marca a diferença das mulheres e dos homens é a existência de outros valores presentes no feminino. A atuação e o cuidado com o outro, a proteção da vida, a valorização da intimidade e do afetivo, a gratuidade das relações e a ênfase no relacionamento interpessoal devem ser retirados do lugar piegas para serem colocados em seu estatuto de força constitutiva e atuante numa ordem de valores institucionais.
Não podemos negar que o feminino da igualdade ergueu bandeiras importantes da mulher junto à educação, ao trabalho e à política. Ele combateu o papel subalterno da mulher, a liberdade à concepção e ao direito do prazer. Assim o feminismo fez-se escutar mundialmente.
Estamos hoje numa proposta pós-feminista que, longe de negar o feminismo, propõe-se a corrigir suas distorções. Não prescinde o feminismo porque foi necessário partir da identificação de um Universo Feminino para indagá-lo e relê-lo como cultura.
Ao relê-lo, deve-se abandonar a ideia da diferença entre gêneros que descaracteriza a mulher e a coloca como ser frágil, sem vida própria ou vontade, incapaz de liberdade e autonomia. A ideia da diferença necessária é a que caracteriza a mulher a partir dos valores constitutivos da identidade feminina, de reivindicação e ocupação de espaço nas múltiplas dimensões da vida social.
Ao final, a lógica do mercado é triunfante, mesmo que repleta de buracos e questionamentos das verdades colocadas. A tecnologia, cada vez mais avançada, desemprega mundialmente. É alarmante. Nessa luta, homens e mulheres estão diante de um desafio que supera a questão de gêneros. É a luta pelos valores humanos e sociais. Nesse sentido, o projeto da diferença não passa pela revalorização privada para as mulheres, mas pelas mulheres e para o conjunto da sociedade.
Desmistificar os valores intocados da ordem masculina e abrir um diálogo propondo avanços que integrem os sexos, no desafio comum de um mundo mais dotado de sentido, com projetos que tenham sempre um pé no chão e outro no sonho.
Tentar, tentar sempre. Não desistir.