Liberdade e prisão

Liberdade e prisão

Quem acompanha meus textos aqui no site e minhas postagens no Instagram sabe que eu estou acostumada a fazer reflexões sobre o eu, o outro e as relações. Mas a partir desta semana vou fazer isso de um jeito diferente: contando uma parte da minha história. E vou começar com um pedaço que fala sobre liberdade e prisão, de uma época na qual trabalhei com grupos de crescimento.

Uma proposta tão singela, quase banal de reunir pessoas em grupos pode se prestar a abordagens simplórias ou a experiências muito complexas. Estas, em geral, acontecem quando a formação de grupos de crescimento está associada a ambientes hostis, sofridos, quando não, perversos.

Pensou que eu estava falando de empresas? Bom, em algumas delas esses adjetivos até cabem. Mas eu estava falando de uma prisão. Soa pretensioso ou ingênuo organizar grupos de crescimento num presídio?

É dessa experiência que começo a falar no texto de hoje. Vou contar minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, começando por explicar o que fazia por lá uma psicóloga de posição profissional extremamente estável, valorizada e bem remunerada como consultora de organizações. O que a fez trocar a agenda lotada de viagens por todo o Brasil num trabalho que gostava muito por uma experiência de trabalho no sistema prisional?

 

Liberdade e prisão são antônimas?

Sempre achei que as grandes decisões da vida estão ligadas à nossa essência. Qualquer coisa que se contraponha à liberdade me soa claustrofóbica e cruel. As instituições totais, que nos subtraem o direito de ir e vir, me remetem aos tempos medievais, às piores visões da escravidão.

Da forma como organizamos nossa sociedade, elas são absolutamente aceitas e necessárias, mas, eu me pergunto sempre: como ser livre dentro de uma prisão? A roupa é igual – diferenciada muitas vezes por um número –, os horários, a alimentação, a rotina de visitas e quaisquer outras atividades são controladas pela administração. Já conseguiram se imaginar assim o dia todo?

Mas é claro que o elemento “controle pela administração”, esse que é registrado nos documentos, é a parte mais leve do presídio. O verdadeiro mundo cão das prisões não é documentado na burocracia da instituição. E foi nesse mundo cão que eu fui parar.

 

Estruturas que aprisionam: o machismo na chegada ao Sistema Penitenciário

Ainda na minha fase de consultora, recebi uma proposta para desenvolver um projeto chamado “Prisão Albergue” para a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro. O resultado da consultoria foi o que ocasionou o convite para assumir a direção do Instituto Muniz Sodré, o primeiro presídio que dirigi.

O que motivou o convite foi a intenção de fazer do instituto um modelo de abordagem educacional, voltado para jovens. A pessoa que me convidou contava com minha admiração e confiança, fruto do trabalho do projeto “Pensão Albergue”. Ela me encorajou a enfrentar essa estrada, para a qual eu não tinha mapa ou bússola. Tinha sim um coração livre, que se comovia com o que via e sabia que aqueles presídios aprisionavam muito mais do que só o corpo, impossibilitavam muito mais do que a liberdade de ir e vir. Ou seja, daquele jeito não podia ser.

O Instituto Muniz Sodré, em Bangu, é uma unidade que trata de jovens delinquentes, na faixa de 18 a 21 anos de idade. Essa informação foi a primeira daquelas “hipocrisias” que a burocracia registrava, mas a vida real retrucava: encontrei no Instituto meninos de 12, 14, 15 e 16 anos, depositados pelo juizado de menores por julgá-los muito perigosos.

Pedi demissão de um emprego super estável, numa empresa que me tratava muito bem, e fui tomar posse como diretora do Instituto Muniz Sodré: a única mulher dentre 23 diretores empossados. Também a primeira mulher a assumir um cargo de diretora de um presídio no Rio de Janeiro – o que também fala de liberdade e prisão. Quanto das estruturas do machismo, que se arrastam há séculos nesse país, ainda aprisionam mulheres a cumprir um dever que pode ser benéfico para as sociedades nas quais elas estão? E quanta energia e desgaste é necessário para quebrar as correntes dessa estrutura machista e se sentir livre para fazer as próprias escolhas?

Confesso que me causou estranheza o assédio dos repórteres, que focaram no ineditismo de uma mulher ocupando o cargo de diretora do Muniz Sodré. Mas libertar-se de uma estrutura tão aprisionante como o machismo te ajuda a construir um lugar de fala. E quando esse lugar também é de destaque – diretora de um presídio – e abre-se espaço na imprensa falada e escrita para as suas ideias, você sente-se segura para manifestar a liberdade. Eu pude comunicar o que pensava. E foi a partir dessa comunicação que se plantaram as sementes de uma rede que serviria como um tremendo suporte para essa jornada, que estava só no início…