Direção do sistema
Encerro o ano fechando a história da minha passagem pelo Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Quem leu meu último texto sabe que coloquei duas condições para assumir a direção do Sistema. Inicialmente as duas foram atendidas, mas o desdobrar dos fatos me fez perceber que não poderia contar com o apoio nem com o comprometimento do Secretário de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Em outubro eu comecei a contar a parte da minha história profissional que foi vivida no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Decidi falar dessa experiência porque, por meio dela, poderia refletir sobre o eu, o outro e as relações tendo como pano de fundo as instituições totais.
Se você chegou agora e quer acompanhar a história do início, pode acessar os nove textos anteriores pela lista abaixo:
- Liberdade e prisão – minha chegada no Sistema
- Formando redes de suporte à gestão – sobre a excepcional equipe de voluntários que formei no Instituto Muniz Sodré
- Ampliando o processo de gestão – de como envolvi os guardas na gestão do presídio
- Ampliando o plano de gestão – sobre a formalização do plano de gestão do Instituto Muniz Sodré, cocriado pelos grupos de atores que compunham a cadeia
- Treinamento de novos agentes – de como receberíamos um grande e inexperiente contingente de novos agentes penitenciários
- Estratégia, recrutamento, seleção e treinamento de pessoal – de como planejamos e realizamos o treinamento de 1.000 pessoas, sempre envolvendo os agentes mais antigos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro
- Formação de equipes – minha chegada na penitenciária Lemos de Brito, com um complicado contato inicial com os guardas
- Crescimento baseado em convicções – sobre os primeiros desafios na Lemos de Brito e como, de repente, apareceu um maior
- Negociação – das condições colocadas para que eu assumisse a Direção Geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro
O Secretário de Justiça, gestor ao qual eu me reportava, inicialmente concordou com a criação do quadro de carreira e com a escola penitenciária, as condições que tinha estabelecido para assumir a função de Diretora Geral. Como nunca fui muito de perder tempo, arregacei as mangas e parti para a composição do quadro de carreiras – que, na minha avaliação, era mais urgente.
Agora Diretora Geral: de novo a primeira mulher, dessa vez para dirigir o Sistema Penitenciário
Não esperei uma semana para fazer uma reunião na Associação dos Agentes Penitenciários. Infelizmente ela era uma instituição bem esvaziada; na primeira reunião, o quórum aproximado era de 50 pessoas.
Marquei uma segunda reunião e avisei que convidaria o Secretário de Justiça para conversar com eles. Nessa ocasião a casa estava cheia e a conversa se desenrolou de forma amigável. Os agentes penitenciários apresentaram vários pleitos; dentre eles, o cumprimento das duas condições que havia colocado para assumir a função de Diretora Geral: o quadro de carreira e a escola penitenciária. Ao final da reunião, marcamos uma data para o Secretário de Justiça voltar com a resposta.
No dia da nova reunião, a casa estava muito, muito mais cheia. Havia uma grande expectativa que foi aumentando conforme se estendia o atraso do Secretário de Justiça. Depois de um tempo de espera, recebo a informação: o Secretário não poderia vir e uma nova data deveria ser marcada.
Aquela multidão esperançosa rapidamente se transformou quase em um motim revoltado, sentindo-se enganado. Começaram a surgir os gritos: “fomos enganados! É greve! Para tudo! Greve geral!”
O eco foi estridente e vigoroso até que uma das lideranças dos agentes penitenciários tomou formalmente a palavra. Ainda hoje escuto ele falar: “nós temos uma pessoa aqui que, até agora, não nos decepcionou. Acho que devemos ouvi-la. Dra. Raquel, o que você acha disso tudo?”
Respondi: “acho muito ruim o que está acontecendo. Só que desconheço as causas da ausência e acho que, quando o que está em jogo é algo tão importante, isso merece uma nova oportunidade para dar certo. Se não funcionar, aí é com vocês”.
O plenário recuou com a greve e marcamos nova reunião.
Direção do sistema: desmoronamento
Na data marcada lembro-me de estar num camburão, voltando de uma reunião em Niterói, na Penitenciária Ferreira Neto. Recebi uma ligação do Subsecretário da Justiça me informando que o Secretário da Justiça não poderia comparecer, mas que ele iria em seu lugar, o representando. Já irritada, respondi que não estava preocupado com o mensageiro e sim com a mensagem. Esperava que ele trouxesse a resposta sobre o quadro de carreira e uma previsão para a criação da escola penitenciária.
Na chegada ao local da reunião enfrentamos grande dificuldade de acesso. O entorno estava repleto. Ao entrar, encontrei-me com agentes penitenciários de todas as unidades: Ilha Grande, Magé e várias outras.
Os ânimos, que já estavam alterados desde a última reunião, se acirraram ainda mais com a presença do Subsecretário. Ele abusou da prolixidade para dizer que nada iria dizer.
Diante dessa situação, na plateia, já não dava mais para identificar o que era dito. Todos falavam ao mesmo tempo. Até que aquela mesma voz, da liderança dos agentes, me indagou: “e agora Diretora, o que nos diz”?
Não procurei disfarçar as lágrimas. Disse: “é com muita tristeza que eu me declaro demissionária. Posso perder o cargo, mas jamais a confiança de vocês. Agora é com vocês”. A assembleia respondeu com uma trovoada: “greve, é greve, é greve”!
Chegando em casa, meu telefone vermelho tocava insistentemente. Ele era ligado diretamente ao Gabinete do Secretário de Justiça. Ao atender, este me perguntou se eu estava louca, disse que não poderia fazer aquilo, que tinha que voltar atrás. Vou me reservar ao direito de não publicar aqui a minha resposta.
Hoje não existe mais Instituto Muniz Sodré, não existe mais penitenciária Lemos de Brito, não existe mais tanta coisa. Existe um quadro de carreira dos agentes penitenciários e já tivemos um agente que virou diretor de presídio. Existe uma Escola Penitenciária. Bem, existe mas é como se não existisse.
Há um vazio de ideias e ideais, há um aumento avassalador na escalada de violência, há um cansaço da sociedade com a comunidade carcerária. As prioridades são tantas outras.
Mas lá no fundo, onde talvez ninguém ouça, há uma voz que diz: “é possível”!